A Moça de Preto

By Denys Presman

(Palco vazio. Cercado apenas de velas. Nenhum elemento. Tudo escuro. Como se fosse um velório. No som do teatro se ouve muito choro, muita lamúria – sons que durante toda a peça virão com mais ou menos intensidade. No início este sons de lamúria estão mixados com a música “SIM” , de Cartola e Oswaldo Martins.

Do meio para o final da música, uma moça vestindo preto entra em cena. Luz somente sobre a moça. Demonstrando a maquiagem forte e borrada de choro, como se fosse a de alguém que está de luto. A moça, a princípio em silêncio, se mostra atônita. Não parece saber muito onde está e não se importa muito com isso. Ela olha à procura de alguém com quem falar. E só encontra a si mesma. Ela chora, mostra desespero. Precisa ouvir sua voz. E quando escuta a si própria desabafa. Ao começar a fala da moça o som de choro e lamúrias cessam, de forma a mostrar que naquele momento ela só consegue ver a si mesma.)

Moça de preto – Meu pai morreu com vontade de comer manga. Passou o dia na cama se contorcendo, pedindo: Filha, me dê uma manga. Filha, eu quero uma manga. Vocês sabem o que é isso? E eu olhava… ele, ali, deitado, aleijado, e não mais senhor de sua vontade. Esgoelando… um simples desejo e até isso lhe era negado.

(Imitando o pai) Filha me dê uma manga…

(Na própria voz) O lençol cheirava mal, a urina velha. Sua expressão era de um cadáver. Parecia que nem vida havia. Olhos sem brilho, foscos, que não diziam mais muita coisa. Pareciam feitos de vidro. Ouvia mal, respirava com dificuldade e ao falar grunia. Hum! Nada mais funcionava direito. Tinha que se alimentar mas não sentia fome. Tinha desejos! Tudo que não podia.  Queijo, caju, salaminho ou qualquer salgado de botequim. Comida baiana nem se fala. Caruru, acarajé, abará… moqueca de camarão ou de peixe… bobó ou vatapá. Tudo com azeite-de-dendê e pimenta… Adorava pimenta, daquelas cultivadas em quintais.

(Pensativa) Sabe, o verdadeiro herói é aquele que vence os próprios desejos. Entrar em guerra contra o que se odeia é fácil, mas estar em permanente vigília daquilo se ama (ri de leve)… herói.

(Imitando o pai) Filha, eu quero uma manga!

(Voltando a sua voz) Era sempre comigo… (aceitando o fato) Sempre comigo. Minha mãe, coitada, tenho pena. Era toda sacrifício. Trabalhava dia e noite, o tempo inteiro, pra que a gente pudesse pagar as contas. É uma doença muito cara, entende? (rindo) Devia ser exclusiva de gente rica. Mas não, não é não (com sarcasmo). Se tem uma coisa que Deus sabe ser é democrático com as mazelas. (Ri)  Doenças são divididas irmamente entre ricos e pobres e não discriminam credo, cor ou sexo. (ri de leve, pequena pausa, depois irônica). Por isso, pela tal justiça divina, minha mãe fazia um esforço fora do comum… como lutava. E ficava meio que dividido assim: ela trabalhava e eu ficava mais com ele.

(Fora de si – chorando) Perdão, pai… perdão!! Perdão por ter errado tanto…. perdão… (geme) perdão… eu devia ter sido uma filha melhor, uma pessoa melhor. Sinto tanto sua falta. Perdão, perdão!

(Chorando e se recompondo) Não parece muito, né? Não  parece mesmo! (irritada quase com fúria) Tudo é fútil, bobo, supérfluo. Era apenas uma manga que ele pedia, meu Deus. Besteira, né? Mas o médico dizia:

(Imitando o médico) “Nem pensar, nem pensar. Seu marido não pode se dar ao luxo de uma alimentação como esta. Quer matá-lo? A senhora sabe bem da saúde dele. Está por um fio, por um fio.”

(Em sua voz) Devia falar comigo e não com minha mãe. (se afirmando) Comigo! Mandaria o médico à merda.

(pequena pausa) Não comia mamão pois é laxante demais, não comia sal pois retém líquidos, não comia proteína porque aumentava a pressão, não bebia refrigerante pois o excesso de refrigerante era ruim para o coração. Cachaça, cerveja, batida de maracujá ou de cajá, necas… álcool nem pensar, o fígado já era.

(Na voz da mãe) “Açúcar?? Tá louca, filha, e a glicose?”

(Em sua voz, bem doce) Mas, mamãe, papai tem câncer e não diabetes.

(Voz da mãe) “Não interessa, o médico diz que não pode. E não pode!”

(Voltando a sua voz) Médico filha da puta!!!! Devia falar comigo, devia falar comigo, o mandaria à merda. (Gritando) À merda!!!!

(Imitando o médico, imaginando a cena) “Nem pensar, nem pensar. Quer matá-lo? A senhorita sabe bem da saúde de seu pai. Sabe muito bem.”

(Voltando a sua voz, revoltada, como se falasse para o médico) Vai à merda, seu filha da puta. Ele só quer ser um pouco feliz. Matar um desejo. E você não deixa… (Emocionada) não deixa, caramba.

(Pequena pausa, triste) Deus, não deixa… não deixa!!! Malditos!! Malditos!!! (Grita em raiva) Puta que pariu!!!

(Pequena pausa, respira fundo e volta ao seu centro, séria mas serena, doce.)

Meu pai sempre foi meu apoio, minha coragem… minha vida. Me mantinha na linha. Na base do sermão, da bronca. Nunca levantou um dedo pra mim, nunca me bateu. Era um homem justo e eu o admirava.
Não era meu pai de verdade, nem na genética nem no papel. Não que isso importasse alguma coisa. Papéis se rasgam, e a genética (não sabe o que dizer), a genética… bom, a genética que se foda! (sorri feliz) Eu o amava demais. Ele era minha vida!

(Chorando novamente) Sinto muito pai. Sinto muito pai. O senhor não sabe como foi difícil. Não sabe! (por fim som de choro repetindo com dor) Não sabe… não sabe… não sabe…

(Engole o choro com dor)

( Depois de se recompor, mas ainda com lágrimas nos olhos) Não era meu pai de verdade e isso era gritante nas nossas diferenças físicas. Sou assim branquinha, de olho azul, cheirosa. Na rua me chamam de gostosa.

(Fazendo voz grossa) “Que patricinha gostosa. Que xoxotinha, que bundinha, vem cá prestar um serviço… vem fazer uma caridade.”

(Ri e volta a sua voz) Mas eu me acho magrinha. Sem graça. Nem sou muito de me vestir demais nem de ficar me olhando no espelho.

Já meu pai era negro, escuro, azul mesmo… até desbotava. (Gabando-se) Era bonito…  forte e rígido. (Ri) Herói…
(Séria) Morreu fraco, quase não era homem. E para minha mãe não o era. (pequena pausa) Pobre mamãe… Coitada. Dava tudo de si, trabalhava dia e noite. Chegava em casa e não tinha marido. Tinha apenas um cadáver na cama, um cadáver que ainda não tinha desistido de viver. Que lutava para viver. É preciso muito amor para este tipo de abnegação.
Quando eles se conheceram eu já era nascida. Era uma menininha, tinha de 5 pra 6 anos.  Foi em uma gafieira. Minha mãe loira, branca, alta, magra mas com largas ancas. Chamava mais atenção pela bunda do que pelos olhos azuis. Ninguém nem percebia que ela parecia uma europeia, um bibelô, uma princesa. Era fina… com porte mesmo. Só falavam que tinha uma bunda gostosa. É impressionante. Homens… (em revolta) Minha mãe era uma bunda. Minha mãe era reduzida a uma bunda. (Ri) Estou até ouvindo a voz do meu pai, aqui, à beira do meu ouvido. Vejo ele sorrindo, com seu bigode grosso:

 (voz do pai) “Reduzida não, filha, reduzida não. Era uma bunda muito grande, de respeito.”

(Voltando a sua voz) Bonachão (ri)… brincava com tudo. Mamãe sorria constrangida e brigava.

(Voz da mãe) “Que isso, Norberto! O que a criança vai pensar?”

(Volta a sua voz) Eu não pensava em nada. Via naquilo intimidade, paixão, até mais: felicidade. A cumplicidade é uma flecha certeira para o amor. (sorri) Amor… amor…

(suspira fundo, como se ela amasse) Ai, deu vontade de um cigarro.

 (as lamúrias surgem ao fundo e são ouvidas por poucos segundos… não muito alto)

 Eu fico ansiosa. É que eu queria ter visto o encontro deles… Na música…

(Começa a tocar a música “Senhora tentação”, de Silas de Oliveira . A moça para e começa a escutar a música. Canta junto com a música. É como se ela vivesse a história dos pais. Ela sente a música, respira a música, canta a música.)

Os amores que começam na música herdam pelo menos uma trilha sonora.

(Ela começa dançar, depois a cantar enquanto dança)

“Sinto abalada a minha calma, embriagada a minha alma, efeito da sua sedução. Ó minha romântica senhora sensação, não deixe que eu venha sucumbir neste vendaval de paixão. Ó minha romântica senhora sensação, não deixe que eu venha sucumbir neste vendaval de paixão.”

(Ela para de cantar, dança mais um pouco. A música baixa. A moça fica um pouco em silêncio. Ainda toca a música bem baixo até parar.  Emocionada, ela se volta para o público.)

Papai falava tanto naquela gafieira, tanto daquela noite… Dizia que lá os sambas eram geralmente cantados pelos próprios compositores. E que qualquer um que chegasse com um violão podia tocar. Qualquer um! Que tudo era muito rude, mas com um ar de boemia, de diversão, de romance. Sempre sonhei com ambientes assim. Naturais, espontâneos, até mesmo ingênuos. (sorri admirada) Imagina…qualquer um com um violão podia tocar, qualquer um!  Para mim tem algo de nostálgico nesta época.

(pequena pausa, sorri nostálgica) Foi nesta gafieira que meu pai e minha mãe se conheceram. E não deve ter sido fácil para ele. Não sei bem por que, mas sinto que as conquistas naquele tempo eram feitas mais na marra, na dificuldade. Mais no vem cá minha nega… Por isso tantos malandros…

Devia ser quase um campo de guerra. Homens contra homens desejando mulheres. Suas armas eram a simpatia, a dança, o samba, e muitas vezes a boa e velha cerveja.

(ar de reprovação) Todo mundo bêbado no samba. (ar de admiração) Todo mundo bêbado. E mesmo assim, se respeitavam ou brigavam, numa espécie de reverência lúdica à honra do lugar e à moral das pessoas. (ar de admiração) Bêbedos com dignidade.  São os melhores. Passam a mão nas mulheres e pedem desculpa por isso. Afinal, não é só o que queremos, algum respeito?

(fazendo voz de um grosseirão) “Desculpa por apertar a sua bunda, por te sarrar.”

(voltando a sua voz) “Não foi nada, obrigada pela satisfação.”

(para a platéia) Mamãe devia sofrer com isso.  Afinal, segundo papai ela tinha uma bunda de respeito. (ri) Era uma das mais desejadas mulheres de toda a gafieira. Papai dizia que ela não dava a menor bola pra ninguém.

(como se fosse o pai) “E não dava mesmo, filha, ela torturava a todos, a todos. Mas sabe como é, né? Dei-lhe uma cachaça, fiz- lhe um cafuné….(ri que nem o pai)

(com sua voz) Papai jantou minha mãe com cachaça e cafuné.  Mamãe disse que teve flores também. E eu não duvido. (sorri) Ele era um cavalheiro e definitivamente um amante de uma boa cachacinha. Dizia: Assim abre mais fácil o sorriso. E saía com os dentes brancos, sua pele azul e seu bigode inconfundível. Sempre usou bigode. Aliás, mentira. Perdeu uma vez em uma aposta.  Eu ri tanto dele… Não devia apostar no Botafogo.

(para o pai) No Botafogo, papai? Apostar no Botafogo? Tenha dó, né? Tenha dó!

(para a plateia) Não dá pra ganhar. Acho que fez de propósito. Ele devia estar cansado do visual. Mas, depois de um tempo, voltou a deixar crescer. (deslumbrada) Naquela gafieira, dançando, ele usava bigode e ofereceu flores para minha mãe.

(Sorrindo) Meu pai era um cavalheiro (séria) e morreu com vontade de comer manga!
(o som de lamúria volta)

(Gritando)  Que merda!!! Era só uma manga, Deus. Só uma manga!!!! Por quê? Por quê?
(chorando) Não é justo. Não é nada justo. A felicidade ou a vida? Não se pode colocar ninguém neste dilema. (como se falasse pra Deus) Ninguém, ouviu?
(revoltada) E aí, morreu mesmo. Mudou algo? Ele foi embora no desejo…. na falta.
(Suspira forte e fala para si) Ai… como eu queria um cigarro, agora!
(revoltada, falando para a plateia) Não faz sentido nenhum. A gente vive, luta, se apega às coisas. Se apega à vida e de repente morre.

(A moça se desconcentra. O som da lamúria aumenta. A luz em cima da moça enfraquece.)
(para o as vozes de lamúria) Alguém tem um cigarro?
(para o público) Vocês conseguem entender isso? De que vale a pena viver se no final acaba? A gente acaba, (nervosa) a gente acaba! As pessoas que amamos morrem.

(Chorando compulsivamente)

(como se falasse com o pai) Perdão pai, perdão! Eu errei tanto! Eu errei tanto!! Errei com todos, e principalmente comigo. Perdão! Eu merecia uma coça, eu merecia uma boa surra. Mas você nunca me bateu. Nunca levantou a mão pra mim. Não sou mais aquela boa filha. (quase sem conseguir respirar) Não sou mais… não sou mais… não sou mais… ahhhhhhhh.. não sou mais ninguém…
(fora de si) Me dá uma coça, pai…. me bate…. me dá aquela surra!!!  A que você nunca me deu…. me bate!!! (gritando fora de si) me bate!!!

(depois de respirar, parecendo mais calma) Você morreu, pai! Morreu… e não ficou mais comigo. De que vale todo sofrimento se no final acaba?
Sentir, amar, tudo é irrelevante. Não tem sentido, pois se amar é viver e a vida não tem a menor lógica…. Pai, me ajuda…. pai!!!!! Preciso tanto de você… tanto…
 (falando com as vozes de lamúria) Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh! Um cigarro, porra!!!

(A moça se desespera momentaneamente e grita, chora e se joga no chão)

(chorando) Um cigarro, porra!!! É só um cigarro. Tanta gente aqui… chorando junto comigo e ninguém tem um maldito cigarro!!!

(A noção de realidade volta aos poucos, a moça olha pros lados, o som de lamúrio vai baixando até que termina. A luz em cima dela volta a ficar forte. Ela se acalma, se levanta, e quase que serenamente volta a falar.)

Quando meu pai era vivo eu não fumava. Se ele soubesse… eu ia ouvir tanto. .. De como faz mal para a saúde, que mulheres direitas não fumam, se eu estava querendo me matar… aquele papo de velho… Mas tinha tanta coisa que ele não me deixaria fazer e que depois fiz…  Tanta coisa mesmo.

Por exemplo, o que eu fiz com Pedro. Ah!!! Ele adorava o Pedro. Queria que eu me casasse com ele. E eu também queria. Sabe, amei muito o Pedro. Nunca esperei na minha vida amar tanto alguém…. (mudando de tom, confusa) mas… mas… mas…  como eu odiei o Pedro… ai que ódio… como eu odiei o Pedro.

(Pequena pausa, agora saudosa) Quando conheci, me apaixonei. Não queria comer, não queria beber, não queria nada… só pensava nele. Uma vez brigamos feio. Por besteira, fiquei com ciúmes de uma amiga dele, uma amiga de trabalho. Não saí do quarto por três dias. Três dias trancada sem querer ver ninguém, nem saber de nada.

(fazendo voz da mãe) Norberto, vai ver o que tem de errado com sua filha, faz dias que ela está fechada naquele quarto.

(Voz do pai) Deixa a menina, Neide… É dor de amor…. e sofrendo também se aprende…  (ri que nem o pai)
Mas papai não queria me ver sofrer. Nem Pedro… (suspirando)

(como se falasse para Pedro) Pedro… Meu pai morreu, Pedro… eu quero sofrer… quero morrer junto, entende? (louca) Me deixa!!!!

(Serena) Pedro não entendia isso. (feliz) Queria me ver feliz novamente. (chorando) Como ousou? Como ousou? Como ousou fazer isso comigo? (revoltada) Como ousou achar que eu não tinha o direito de sofrer pelo meu pai? Pela viuvez de minha mãe… pela minha própria viuvez.

(respira e volta mais serena e louca) Deus só existe no nascimento e na morte. Primeiro a gente agradece e depois xinga.

Pedro fez o que eu menos queria. Tentou me dar esperanças. Falava que meu pai estaria bem, pois sempre foi um homem digno.

(como se falasse para Pedro) Pedro, não vê? Não consegue ver? Toda esta dignidade o levou à morte, não vê? O levou ao sofrimento. A virtude não o salvou de ser um aleijado, um meio-homem, que implorava por mangas!

(para si mesma) Não devia ser assim. O sofrimento não devia fazer parte da regra do jogo.  Pedro me falava em algo a mais. Pensava que se eu acreditasse eu suportaria. Me fazia um discurso de que ele acreditava que a vida ia além. Que a morte não era o fim.
(Louca, para Pedro) É o fim!!!! É o fim!!! É o fim….

(Mais serena, para a plateia) Dizia que a morte era apenas uma passagem para um plano espiritual de acordo com o nosso nível de compreensão.

(como se falasse para Pedro) Pedro, eu não compreendo, não compreendo… nem quero compreender e tenho raiva de quem compreende!

(para a plateia) E que meu pai foi um homem muito bom em vida. Que estaria em um lugar belo onde depois eu o reencontraria. Dizia também que a morte não significava nada mais do que uma passagem e que a vida era uma oportunidade de crescimento.

(novamente falando com Pedro, pontuando) Foda-se!!! Foda-se!!! Foda!!!

(depois de pequena pausa, volta a si e ri) Odeio a calma de quem tem esperanças em um depois. Morreu acabou. Ou se não acabou… não sei… Só sei que… (triste) que não tinha mais meu pai comigo.

(Depois de uma pausa, revoltada, como se falasse para Pedro) Minha mãe, Pedro? Ela não precisa de mim. É uma ingrata, uma falsa!! Não precisa de ninguém!! Seguiu adiante…

(chorando muito) Como pode? Como pode? Como pode?

(Para a plateia, novamente)
Papai morreu e ela já o esqueceu? Não sofreu como eu sofri. Devia estar até aliviada, agora pode ser mulher de novo. Falsa! Falsa! Falsa! Como eu a odeio, papai morreu e ela seguiu adiante… como a odeio por isso.

(Chorando muito) Eu o amava mais do que ela o amava! Muito mais… Eu sofri, sofri demais… (Com raiva) Mas ela… ela não. Continuou com a vida. Trabalhava e tentava fazer que no dia a dia as coisas melhorassem. Me fazia mimos. Me via triste, em um canto, e vinha me dar um abraço ou fazia o bolo de fubá que eu tanto adorava.

(Como se falasse para Pedro) Pedro, ela me fez bolo de fubá de novo. Bolo de fubá não vai trazer o meu pai de volta. Não vai!!!

(Para a plateia, rindo, nostálgica) Mas que o bolo de fubá de mamãe era gostoso, ah isso era. Meu pai dizia que se as largas ancas de minha mãe…

(Fazendo voz do pai) Que isso, filha, largas ancas? Largas ancas não. Bunda grande, bunda grande! De respeito… enorme!!!

 (Voltando a sua voz depois de rir com a lembrança) Tá bom, tá bom… papai dizia que se a bunda grande de minha mãe chamou atenção à primeira vista, com certeza o bolo de fubá selou o destino dos dois… eu também adorava aquele bolo.

(Descontrolada, para Pedro) Tudo me lembra meu pai! Tudo, Pedro. Não sei o que fazer, não sei! Não sei! Me diz o que eu posso fazer? Me diz!!! Me diz o que eu posso fazer?

(Depois de uma pequena pausa, recuperando o fôlego. Para a plateia)
Uma vez fui com Pedro falar com um Preto Velho. Ele queria me mostrar algo diferente. Não aceitava o que eu sou: uma cética.

(Como se falasse para Pedro, centrada) Eu não acredito, Pedro. Não acredito em nada disso não. Não sei por que que você insiste. (doce, se contradizendo) Mas se você acha realmente que isso pode me fazer bem, eu vou sim, eu vou a este centro espírita.

(Para a plateia) Na verdade, eu estava curiosa. Queria muito falar com um Preto Velho.  Nunca tinha tido esta experiência. (patética, quase infantil) E falando com alguém que já morreu eu podia ter uma resposta, pois eu queria saber se no céu, onde papai estava, havia mangas para ele comer, ou pelo menos um salgado cheio de pimenta.

(imitando um Preto Velho) “Echtê fiá, abre seu coração para sua vida. Aceite que seu véio pai foi e tá cá do lado de cá. Seguiu a jornada. Agora vosmecê precisa seguir seu caminho também. Viver o que precisa viver para chegar do lado de cá tão formosa como seu véio pai chegou!”

(voltando a sua voz) O Preto Velho cometeu o mesmo erro de Pedro.  Tentou me dar esperanças. E isso não queria. Isso era uma afronta.

(Depois de pequena pausa) Deixei o Preto Velho, deixei Pedro. Na verdade traí Pedro.

(ri doentiamente, som de lamúrias volta ao teatro) Eu traí Pedro. Corno! Corno! Chifrudo!(ri)

(triste, choramingando, como se negasse para Pedro) Eu não queria, não queria. Pedro, naquela cama nua. Não era eu. Não era. Juro que não.  Foram as drogas que falavam por mim, agiam por mim. (gritando) Não!!!! Pedro, Pedro, volta!!! Volta!!!

(Ela fica em silêncio. Respira fundo. E depois da pausa para recompor, com uma serenidade doentia, fala para a platéia.)

Meu pai nunca traiu minha mãe. Ele dizia que quando a gente ama alguém, tudo que a gente quer é o bem dessa pessoa. E quando a gente trai alguém que a gente ama, a gente está fazendo a pior coisa do mundo. Fazendo mal a quem nós juramos o bem, fazendo  mal para  nós mesmos, traindo a nossa consciência.

(Com certa irritação) Eu não tenho mais consciência. Ela foi pelo ralo. Morreu e está enterrada. Por isso eu traí! Porque não existe diferença entre trair ou ser fiel, se no final, querendo ou não vamos morrer, e vamos perder quem a gente ama de qualquer maneira. Se tudo acaba, tudo passa a ser irrelevante. (firme) Traí Pedro e ele falará boas coisas de mim no meu velório.

(doentia, para Pedro) Perdão, Pedro! Não queria, não era eu! Não era… não era.. não era eu.

(Pequena pausa, serena, quase fraca, para a plateia) Quis o destino que eu me tornasse assim, descrente de tudo. Que motivação pode existir se no final tudo termina da mesma maneira, em pó?

Não queria pensar assim. É mais fácil acreditar em algo. A esperança mascara os fracos. Ser forte é encarar a realidade inevitável da vida: que ela termina e que nós também terminamos com ela. Acreditar em algo é a saída fácil dos fracos.
(com loucura) Perdão! Perdão! Perdão! Perdão!

(depois de pequena pausa, voltando a si e serena) Eu ia nas boates da moda. Ficava como uma zumbi. Já chegava bêbada.  Aceitava bebidas de desconhecidos.

(com loucura) Perdão, Pai! Eu sinto muito….

(para a plateia) Eu fazia sexo com qualquer um que me oferecesse cocaína, êxtase, ácido, qualquer droga… Um tapinha me fazia relaxar.

(Como se falasse com Pedro) Não, Pedro, não era eu nua naquela cama, eram as drogas. A menina que você conheceu era outra. Lembra? Eu gostava de subir em árvores e comer goiabas, fazer doce de carambola e deitava contigo na rede. Não havia tempo, nem limite. Papai às vezes chegava e nos pegava namorando. Como éramos inocentes. Eram apenas beijos e nós ficamos nervosos de sermos apanhados. Papai devia rir com aquilo tudo.

(pensativa)  Papai… (séria, doentia) Papai nunca me pegou no quarto nua com homem algum. (sussurrando, como se contasse um segredo) Foram as drogas!!! As drogas, elas me obrigaram a fazer isso. Não era eu! Não era!!

(Pára de sussurrar)

(Dirigindo-se para o som de lamúria, como se falasse para as pessoas) Um cigarro? Alguém tem? Eu preciso me acalmar.

(Para si própria, nervosa, inquieta e louca) Pedro vai me perdoar, vai me perdoar. Com certeza que vai. Só precisamos conversar. Vou mostrar para ele que foi só uma fase. Agora estou bem, estou muito bem. Vou pedir perdão! Vou fazer promessas. (como uma boba, doentia) Promessas de amor são inquebráveis, valem mais que qualquer contrato legal ou do que qualquer outra coisa.

(Para Pedro) Juro que não erro mais, Pedro.

(Para si) Ai, Meu Deus!!! Ai meu Deus!!! O que foi que eu fiz?

(Cessa o som de choro e lamúria)

(Começa a tocar uma música da moda de boate. Ela começa a ouvir a música. Sente a música, antes de descrever o ocorrido. Sente como se estivesse na própria boate. É como se estivesse se lembrando e vivendo pela primeira vez ao mesmo tempo.)

(Para a plateia) Entrei na boate. Já estava lotada e eu já estava bêbada. Fui para a pista de dança. (dança sozinha) Dancei um pouco.

(depois de pequena pausa, angustiada e entusiasmada, se contradiz) Dancei muito, muito. (ela dança sensualmente) Queria ser notada, desejada. Lembro de alguém me chamando no bar. Fui até lá. Me pagou uma bebida. Me chamou de linda. Eu sorri.

(Em sua loucura) Papai, eu aceitei bebida de um homem desconhecido.

(Mais serena) Ele me deu uma Tequila. Virei a Tequila. Me deu outra, virei também. (como se estivesse sentido)  Ele me pegou pelo braço, puxando forte, e me deu beijo. Eu retribuí. Gostei! Depois me ofereceu mais bebidas e perguntou se eu não queria algo mais forte também, algo especial. Eu disse que sim. Ele perguntou se eu morava por perto e eu confirmei.

(Séria, na defensiva) Mas deixei claro que não podíamos ir para minha casa. Minha mãe estava em lá. (pequena pausa, doce e séria) E tem mais, eu respeito a casa de meu pai! Respeito.

(Imitando o homem na boate) Gata, vamos para sua casa, dar um teco e aproveitar a vida!

(na própria voz) Na minha casa??? Mas e minha mãe? Minha mãe está em casa!

(imitando a voz do homem na boate, dando uma de malandro) Sua mãe não é problema, a gente coloca ela comendo pipoca no portão.

(Em sua voz para a plateia) Engraçadinho. (ri)

(séria, mas sem convicção) Queria vir a minha casa. Dar um teco! (falando alto) Eu respeito a casa do meu pai. (decidida) Não vou levar vagabundo pra casa do meu pai.

(Em loucura) Mas papai, papai está morto!!!  E minha mãe seguiu adiante!!! Que se dane!!! Que se dane!!! Vamos pra minha casa!!! Meu pai é um egoísta. Morreu e me deixou aqui.

(Cessa a música da moda de boate)

 (Para a plateia) Fomos para minha casa. Grande engano. O erro é pensar que a vida tem limites com a morte e a gente não tem limites com a vida. (sensual) Bebida, drogas, sexo… (gemendo de prazer) ai… Coloca tudo em excesso e me oferece no café! (ri e depois se perde em delírios. O som de lamúrias toma conta do ambiente)  O que estou fazendo? Esta não sou eu. Não sou eu.

(Em loucura, como se visse Pedro) Pedro!!!! O que você faz aqui em casa??? Não sou eu! Me ajuda!!!

(angustiada e cansada) Não sei mais quem eu sou. Não sei mais de nada! Só quero voltar a ser a feliz, como era quando meu pai estava aqui. Quando tudo era mais simples, quando viver não era um fardo.  Quando… (gemendo de sofrimento) ai…. ai… ai…

Estou lembrando, Pedro, de você tentando me abrir os olhos e me explicando do que vale a vida se a gente não cresce com ela. Lembro também de papai, ah papai… que mesmo naquela cama, aleijado, pela metade, ainda resistia. E de mamãe,

(como se falasse para a mãe) desculpa mãe… fiz pouco caso de você, né? Não queria… eu não entendia nada, nada… e agora vejo como você lutava junto com meu pai, pois você  sabia, sabia que ali no viver, no enfrentar os problemas, a gente se torna pessoas melhores.

(para si) Ai meu Deus!! Vejo agora que passar pela vida e não crescer como pessoa é o pecado capital. O maior dos erros que podemos cometer. A aparente falta de sentido não justifica a desistência de procurar por porquês.

(Com sincero arrependimento) Perdão!!! Perdão!!! Ah, Deus! Perdão!!!
Como não percebi isso? Pedro busca na fé a explicação. Papai buscava na simplicidade das ações e mamãe na luta diária. E eu apenas não me importei. Não busquei. Desisti… não… isso não é maneira de levar a vida! Viver é Aprender.

(gritando) Eu não aprendi nada. Nada!!!
(gritando) Não! Não sou melhor do que era quando eu nasci!
Não pode terminar assim. Não!!! Eu quero viver!!!

(os sons de lamúrias vão diminuindo)

(voltando a gritar) Eu quero viver!  Viver!!!! Deus, como eu quero viver!

(Simultaneamente à última fala da moça, luz forte e branca em cima dela e outra cegando o público, que não vai ver nada por um instante.  As velas se apagam. Por cima dos panos escuros caem panos brancos. Tudo branco. Como em um passe de mágica a roupa preta da moça fica branca.)

(A luz que cega a plateia é apagada. A moça começa a ter uma convulsão forte ainda de pé – para ser notada pelo público. De sua boca sai uma espuma branca.  Ela cai no chão ainda em convulsão. Sirenes de ambulância começam a ser ouvidas.)

(Ela fica em convulsão por alguns instantes com o som da sirene ao fundo.)

(Depois, gravação no som do teatro com dois curiosos conversando, enquanto a moça está em convulsão no palco.)

Curioso 1 – O que houve?  O que houve? O que faz esta ambulância por aqui?
Curioso 2  – Soube não?
Curioso 1 – Não.
Curioso 2 – Overdose! Olha só o babado. A pobre moça foi achada pelo namorado. (Com satisfação por dar a notícia) Estava nua na cama com outro homem.
Curioso 1 – (Curioso e surpreso) Com outro homem?
Curioso 2 – Sim. O amante vestiu as calças e foi embora. Deixou ela pra morrer. (seco) O namorado chamou a ambulância.
Curioso 1 – E vai viver?
Curioso 2 – Parece que sim. Pelo menos os médicos disseram que ela está lutando muito para viver. Mas quem pode dizer ao certo se vai conseguir?
Curioso 1 – Vamos torcer e esperar para ver!

(Mais sons de sirenes, a moça continua tendo convulsões por alguns instantes… até que….

 Fecham-se as cortinas)

Fim.

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